Um pouco de saudade.

 

Ganhei alguns CDs de um amigo que compartilha comigo o gosto pelas serestas e pelas relíquias musicais do passado. Eu gosto das antigas canções do nosso rico cancioneiro popular, não porque seja saudosista, mas sim pela singeleza das poesias, a beleza das melodias e o sentimento de romantismo e enlevo que elas me trazem. Poesia e romantismo não fazem mal a ninguém. Ao contrário, fazem um bem danado. Trago comigo esse gosto pelas serestas desde que era menino, lá pelo fim dos anos cinquenta, quando o meu pai ainda era vivo, e todas as noites, religiosamente, ele ouvia o programa Morais Sarmento, na Rádio Bandeirantes. Era um programa que só tocava música antiga. Aliás, já era música antiga nos idos dos anos cinquenta, então dá para imaginar a idade dessas preciosidades que ele ouvia. E eu me acostumei a ouvir Francisco Alves, Silvio Caldas, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Gilberto Alves, Vicente Celestino, só para citar os mais famosos seresteiros daqueles belos tempos em que a gente podia andar pelas ruas da cidade, de madrugada, cantando essas canções, e a única coisa ruim que podia acontecer era alguma velhota, ou velhote mal amado, jogar um balde de água (ou outra coisa) na cabeça da gente.
Quem nunca fez uma serenata para uma garota, ou para a mulher que ama, não sabe o que é namorar de fato. Não sabe o que é curtir o romantismo de uma cantada bem elaborada, onde tanto o coração quanto o próprio espírito do amor está plenamente envolvido. Sei que agora as coisas são diferentes e não acho nada errado na forma como a juventude de hoje namora. Tudo precisa ser rápido, preciso e eficiente, por que a concorrência é grande e quem é lento perde a vez. Então se deu química, pega-se logo e vai para os finalmente, que é, no fundo, aquilo que realmente se deseja. Hoje, o sexo vem antes de tudo. Naqueles tempos, era a última fortaleza a ser conquistada. Primeiro era preciso conquistar o coração da amada. Depois eram meses, e até anos de romance. E a serenata, muitas vezes, era a chave mágica que dava início a tudo isso.
Os três CDs que o meu amigo me deu levaram-me para tempos anteriores ainda. Lá pelos anos vinte, trinta, quando os seresteiros acima citados ainda estavam começando a carreira. Foi ótimo ouvir o Celestino cantando “Na Casa Branca da Serra”, uma das melodias preferidas do meu pai. O Chico Alves com aquela angustiante “Mulher que Ficou na Taça”, o Gilberto Alves em suas primeiras gravações, etc. Mas melhor ainda foi recordar seresteiros de quem eu nem me lembrava mais, como Paraguassú, Gastão Formenti, Augusto Calheiros,  Nuno Rolandi, Manoel Reis, Januário de Oliveira, Roberto Paiva e outros. E até alguns que eu não conhecia, como Eurystenes Pires e Floriano Belham.
Este último, Floriano Belham chamou a minha atenção pela sua voz, diferente dos demais seresteiros. Estes, geralmente eram cantores com vozeirões fortes e empostadas, que cantavam com voz chorosa, em tom magoado e melancólico, as letras sempre tristes das canções que falavam de amores perdidos ou não correspondidos. Ao fundo, sempre um vilão plangente. Floriano Belham, porém, era diferente. Quando o ouvi pela primeira vez pensei que fosse uma mulher cantando. Estranhei logo o fato, pois salvo a Chiquinha Gonzaga, que não era exatamente uma seresteira, mulher fazendo seresta era coisa quase tabu naqueles tempos. A mulher era a musa, a pessoa a quem os queixumes eram dirigidos, a donzela que se derretia nas sacadas dos sobrados, nos balcões e nas janelas, ouvindo o seu cantor, muitas vezes, por uma fresta, para evitar ser vista, ou pelo medo que um pai rabugento a pegasse dando bola para malandro. Sim, porque seresteiro era sinônimo de malandro, vagabundo, marginal.
Por isso estranhei uma mulher fazendo seresta. Mas quando fui ver o nome vi que se tratava de um homem. Floriano Belham. Confesso que nunca tinha ouvido falar nele nem me lembrava se um dia o Morais Sarmento, o Jota da Silva Vidal, o Salomão Júnior e outros programas que costumavam tocar músicas antigas, tocaram alguma coisa gravada por esse cantor. No entanto, ele foi considerado um prodígio nos anos vinte e trinta, justamente pelo tom da sua voz. Pesquisando na Internet descobri que ele se chamava Floriano da Costa Belham e nasceu no Rio de Janeiro em 3 de fevereiro de 1913 e faleceu em 20 de setembro de 1999. Era um menino quando começou a cantar e fazer sucesso no rádio e no disco. Por isso eu o confundi com uma mulher. Geralmente, como acontece com os meninos-prodígios no mundo da arte, quando ele se torna adulto, dificilmente suas carreiras continuam com o mesmo sucesso. Ao que parece isso não ocorreu com Floriano, pois embora sua voz mudasse muito (tom de soprano na infância, tenorino na juventude e barítono na idade adulta) ele continuou sendo um artista muito respeitado durante a sua vida inteira, Essa talvez seja a razão de eu não ter me lembrado dele. Sua voz de adulto é completamente irreconhecível para quem o ouviu como criança.
Floriano morreu em 1999. Uma coisa que despertou a minha atenção em relação a esse seresteiro menino é o fato de que ele foi meu colega de trabalho. Eu nunca soube disso nem nunca nos encontramos, mas pelo que eu soube, ele também foi, como eu, auditor fiscal da Fazenda Nacional.
Ao meu colega seresteiro menino, ainda que tardias, as minhas homenagens e o meu respeito. E aos amantes de serestas, recomendo um passeio até Conservatório, cidade do Rio de Janeiro que ainda conserva essa velha tradição.

 

* João Anatalino

Originalmente publicado em https://www.recantodasletras.com.br/artigos/5001336