Rito Francês – Ontologia de um Rito
Falar sobre o Rito Francês, num trabalho que se pretende breve, constitui sem sombra de dúvida um enorme desafio. Como sintetizar, em poucas páginas, uma História tão rica, que se explana por mais de 300 anos de prática Maçónica, desde a fundação da primeira Grande Loja até à atualidade? Tudo isto porque não esqueçamos que o Rito Francês, embora Moderno, é o que tem raízes mais antigas.
Se o tempo não chega para a História, será então melhor não falar de História. Sobre este assunto muito tem sido escrito, nomeadamente pelos Irmãos Ludovic Marcos, Pierre Mollier, e Cécile Révauger, encontrando-se disponível uma vasta bibliografia, cuja leitura vivamente aconselho.
A História é importante, é o Esquadro que delineou o Rito. É o que moldou as suas formas rituais, assentes em bases simbólicas, que se têm mantido quase invariáveis desde meados do século XVIII, conferindo-lhe o seu caráter Tradicional. Para compreender bem as Cerimónias do Rito Francês, a abordagem estritamente simbólica revelar-se-á sempre insuficiente, se não for acompanhada da indispensável compreensão dos paradigmas Históricos, que geraram os textos e as práticas, que lhes dão corpo. Se, no geral, muitas vezes a Maçonaria não se explica por si própria, no caso particular do Rito Francês, este aspeto verifica-se de sobremaneira, e tem vindo a ser determinante na evolução das suas formas ritualísticas.
Dada a brevidade desejada para este trabalho, pragmaticamente, não percorrerei, pois, essa via traçada. Optei antes, nesta curta reflexão, por tentar abrir o Compasso, e partilhar convosco algumas ideias relativamente às Bases Filosóficas do Rito Francês, nas quais assenta a sua permanente Modernidade. Pensemos então um pouco, e em conjunto, sobre a sua ontologia, procurando encontrar respostas para as questões: “O que é que é o Rito Francês? Qual é a sua especificidade? Qual é a sua essência?”
Todas as correntes de pensamento transportam sempre marcas identitárias das suas épocas fundacionais, ou de determinados períodos que se tenham vindo a revelar particularmente importantes na sua evolução. O Rito Francês, naturalmente, não constitui exceção nesta matéria.
A História da Humanidade assenta num eterno combate pela Liberdade, pela emancipação de todos os jugos, nomeadamente os impostos pelas morais religiosas, e sociais. Estas sempre tenderam a privar os homens da sua liberdade de pensamento, interditando-lhes pensarem por eles próprios, e de agirem de acordo com a sua razão, e os seus desejos.
Se antes da Era de Péricles todas as civilizações antecedentes se ordenaram com base numa palavra suposta divina, suportada por mitos, o século de ouro Ateniense, inspirado por Filósofos como Sócrates e Platão, constituiu a primeira experiência de busca de uma palavra humana, pela substituição do Oráculo pela Ágora, local privilegiado de debate sobre tudo o que interessava à Pólis. Foi a primeira vez, na História da Humanidade, na qual o Logos se sobrepôs ao Mithos, e em que as decisões dos homens deixaram de ser determinadas por supostas vontades dos Deuses.
Esta breve aventura de emancipação do Pensamento Europeu foi interrompida por um longo obscurantismo, imposto pelos fanatismos religiosos monoteístas, nos quais um Deus único, omnipotente e vingador, ditava o comportamento humano através de Livros Sagrados, que seriam objeto de uma revelação, e fontes de inspiração de ortodoxias incontestáveis, nas quais residia realmente o poder.
Era a palavra divina, que vinha do Alto, e que se convertia em palavra oficial, em Verdade imposta, que sufocava o pensamento, e limitava a ação. Morais sociais opressivas e inigualitárias, guerras religiosas, perseguições, estancamento do conhecimento, foram as consequências lógicas da perda da palavra humana, substituída por uma palavra exterior ao homem. Foram séculos e séculos de trevas, nos quais pensar era uma das coisas mais perigosas, que um ser humano podia fazer.
Só no século XVIII, que viu também nascer a Maçonaria Especulativa, devido às “Luzes” e à Revolução Francesa, a palavra humana voltou a substituir-se à palavra divina, criando espaços de liberdade para que o homem, pela via de um pensamento próprio, fundado na razão, nos conhecimentos, e na sua vivência sobre a terra, se pudesse emancipar. Esta libertação se inscreve num processo que encontra a sua essência na aquisição do direito, que se converte mesmo em dever, de pensar. É o “Sapere Aude”, o “Ousa Pensar” Kantiano, que ilustra perfeitamente o espírito das “Luzes”, e que convida o homem a usar o seu próprio entendimento, a razão, numa busca das verdades, que não é mais do que a procura de uma aproximação à realidade.
O Rito Francês, estruturado em 1786 por Irmãos que eram, ideologicamente, Iluministas Radicais, é, pois, um Rito de liberdade, de livre pensamento e de livres-pensadores, orientado para uma reflexão comum, na qual o Maçon estimula o seu sentido critico pela confrontação das suas opiniões com as de Irmãos ou de Irmãs que poderão pensar de uma forma muito diferente da sua, numa dupla demanda de conhecimento do mundo, e de si próprio. É nesta duplicidade da procura, que reside a essência do Rito Francês, um Rito terreno que pretende a emancipação do homem pela sua maior Humanização, e no qual a palavra será sempre imanente, e não transcendente. Assim, conforme é referido pelo Irmão Gérard Chomier no seu recente livro1, os Maçons do Rito Francês[1] encontram na horizontalidade as metas para a sua progressão. Contrariamente aos Irmãos e Irmãs dos Ritos Deístas, que procuram “chegar mais alto”, eles satisfazem-se por “ir mais longe”, em busca do Universo que os rodeia e de si próprios.
Outro momento histórico marcante para o Rito Francês aconteceu em 1877. No “Convent” do Grande Oriente de França, por proposta do Irmão Frederic Desmonds, foi retirada da Constituição da Obediência a obrigação de crença num Deus revelado, e na Imortalidade da Alma para se poder ser Iniciado, consagrando-se, pois, o princípio da Plena Liberdade de Consciência. A Maçonaria, assim entendida, considera as conceções metafisicas como sendo do domínio exclusivo da apreciação individual dos seus membros, recusando-se a toda a afirmação dogmática.
Esta evolução de pensamento, contextualizada no período emergente da IIIª República Francesa, nascida tanto nas cinzas da Guerra Franco-Prussiana e da Comuna de Paris, como do avanço de correntes positivistas e de livre-pensamento, trouxe para a Maçonaria, e para o Rito Francês, o conceito da Laicidade, enquanto fronteira de separação de um domínio público adogmático, comum a todos os homens, e de um domínio privado relativo às crenças e conceções filosóficas de cada um. Também a Sociedade Civil se tornou laica, passando as instituições a terem o dever de preservar os Cidadãos de todas as formas de intolerância, pela criação de um espaço comum neutro, no qual a Liberdade de Consciência de cada um é garantida, e onde não são admitidos clericalismos.
Em consequência, no Rito Francês, excetuando algumas versões mais revivalistas das práticas do séc. XVIII, Grande Arquiteto do Universo, interpretações religiosas dos símbolos, e importações de correntes de Esoterismos Ocidentais, não se encontram mais nos seus Rituais. Tal sucede uma vez que se considera que a palavra do homem é autossuficiente para ditar o sentido da nossa existência, e da nossa Obra Maçónica. O Maçon torna-se, pois, Sujeito da sua palavra, e da sua vida, e busca a sua emancipação numa Sociedade mais justa, na qual ele é Cidadão empenhado e ativo.
Este despojamento de toda uma panóplia Alquímica, Cabalística, Teosófica, Martinista, que está presente noutros Ritos, não torna o Rito Francês “mais pobre”, ou “menos simbólico”. O que lá não está, é porque não faz lá sentido. E a busca de sentido, de um sentido que cada um encontra por si próprio, é precisamente uma das grandes ferramentas que caraterizam o percurso iniciático no Rito Francês, e reforça a sua principal especificidade, que é a de se ter mantido “puro”, sem grandes importações simbólicas de outros Ritos.
O Rito Francês vai, pois, “do Outro ao Outro”, bem na horizontal, e tem por caraterísticas fundamentais a sobriedade, e a humildade.
Neste percurso recusa-se a “Simbolatria”. Os Símbolos não são entendidos como objetos sagrados, nem portais de acesso a realidades transcendentes, mas sim como um microscópio através do qual o Maçon observa o Mundo, sob uma luz específica, e um ângulo particular.
Sei que vários dos leitores fizeram, até agora, o seu percurso iniciático trabalhando no Rito Escocês Antigo e Aceite, Rito maioritário na Maçonaria Portuguesa, onde tudo é mais explícito. Compreendo se me disserem, ao princípio, que esta sobriedade vos choca, que parece que falta alguma coisa.
Apenas vos posso dizer, do meu percurso pessoal, que ao fim de algum tempo esta austeridade, que chega ao ponto de levar a que a progressão no Rito conduza a maior despojamento dos paramentos, começou a fazer-me sentido. Tal sucedeu quando, fruto da minha vivência Maçónica neste Rito, passei a valorizar, verdadeiramente, a Humildade, enquanto fator essencial de Aprendizagem e de escuta do Outro. Foi aí que passei a privilegiar a Beleza desta Virtude, que a decoração do Templo em Rito Francês pretende suscitar, relativamente à Beleza da forma da decoração da Loja utilizada por outros Ritos, menos despojados. Já os nossos Irmãos do séc. XVIII diziam que “O melhor adorno para o Templo é o das Virtudes”, expressão esta que justifica bem a austeridade do Rito Francês, no qual o dever é estruturante, pois vimos em Loja para “combater as nossas Paixões, submeter as nossas vontades, e fazer novos progressos em Maçonaria”, como é referido na Instrução do 1º Grau dos nossos textos fundacionais[2].
E, imaginar o que não está aparente, não é, também, muito mais exigente, e intelectualmente mais estimulante, do que, simplesmente, ver? Não será sempre mais divertido darmos asas à nossa imaginação, e disfrutarmos da imaterialidade dos Símbolos, colocando-os onde devem realmente sempre estar, bem dentro de nós? É aí que eles nos fazem verdadeiramente falta, para compreendermos melhor o mundo e a nós próprios, e nos podermos aperfeiçoar, enquanto Pessoas e Cidadãos. É também aí, que eles nos dão coragem para lutarmos para que esta palavra humana, que se substituiu à Divina, não possa mais ser perdida.
[1] Chomier, Gérard “Le Rite Français, ses fondamentaux, sa philosophie”, Collection Pollen Maçonnique, Conform édition, Paris, 2020.
[2] “Le Régulateur du Maçon”, Hérédon, L’An de la G:. L:. 5801
Joaquim Grave dos Santos
Publicado: Fanzine #9