Que não entre aqui aquele que não sabe geometria.
“Que não entre aqui aquele que não sabe geometria” – eis aí o que estava lá inscrito, acima do portão da Academia, a escola criada por Platão. Ora, por que o filósofo escreveu algo assim? Por que esse pré-requisito para o estudo da filosofia?
Quando o mau estudante de geometria fica sabendo dessa inscrição, logo se revolta contra Platão, chamando-o de “arrogante” ou, de modo mais tolo, de “elitista”. Claro que Platão queria dividir a sociedade, respeitando elites. Mas a inscrição na porta nunca foi indicação de arrogância. A acusação de arrogância jogada nas costas dos filósofos é, em geral, fruto antes dos que não querem passar pelo amassar o barro da filosofia do que propriamente de qualquer ato nosso, herdeiros de Platão.
A chamada pela geometria, na Academia, nunca foi outra coisa senão o pedido de atenção para que cada estudante pudesse lembrar que o saber que o filósofo busca é um estágio superior ao saber geométrico, sendo que este prepara a escada para aquele. Qual o saber almejado?
Trata-se de um saber que não é o dos sentidos, e que depende de se deslocar para um mundo divino, no qual um dia estivemos não de corpo e nem mesmo de alma em sua completude. Trata-se de rememorar quando nossa alma cognitiva, intelectual, isto é, a parte divina e cósmica de nossa alma esteve no mundo das Formas, do Eidos, do essencial. Este mundo é aquele que tem um grau acima do mundo das formas geométricas. Quem se acostumou a trabalhar com a geometria tem tudo para, uma vez aqui na Terra, passar pela anamnese e recordar boa parte do que viu nos mundo das Formas.
Há algo de místico nisso? Não muito. Talvez quase nada!
Não é difícil saber do que Platão está dizendo, pegando um exemplo dele mesmo: colocamos diante de nossa visão dois dedos, o indicador e o médio, e vemos que o dedo médio é grande e também o indicador é grande, mas que este é menor que aquele. Sendo assim, temos o dedo médio grande e o dedo indicador grande e diferente. Ora, temos dois grandes, mas onde está o Grande? Para que exista o grande do dedo médio e o grande do dedo indicador é necessário que ambos tenham participado (essa é a palavra usada por Platão) do Grande (ou da grandeza, dizemos nós). Ou seja, deve haver em algum lugar o Grande que não está subsumido ao mundo dos sentidos e, portanto, não é o grande do tamanho do dedo médio ou o grande do tamanho do dedo indicador. A Forma do Grande ou o Grande, para Platão, pertence a um mundo com estatuto ontológico, e no qual todos nós estivemos com a “parte melhor” de nossa alma. Nesse lugar há Formas do Grande, da Beleza, da Justiça etc. Conseguir lembrar disso, aqui nesse mundo corpóreo, requer exercício, e esse exercício é aquele que fazemos quando estamos compreendendo a geometria. A geometria é um saber que nos prepara para o saber procurado pelos filósofos, o saber das Formas, o saber divino.
Podemos traduzir tudo acima para a linguagem de Aristóteles, que é mais próxima da nossa, de nossos dicionários (onde tudo isso pode ser chamado de “processos de abstração”). Mas não convém fazer isso. O interessante é manter a linguagem de Platão para compreender efetivamente toda a sua filosofia e o vínculo desta com aquele que precisa ter uma vida de geômetra. Uma vida na Terra compreendendo formas geométricas facilita a lembrança da vida no mundo incorpóreo das Formas. Por isso, ser geômetra não é simplesmente ser um amante dos estudos nesse tipo de matemática, mas ser alguém com aptidão para querer se envolver com a busca de recordações do mundo das Formas.
É fácil ver que aqueles que, diante da frase platônica, chamam o filósofo de arrogante, são eles próprios, na ignorância do que Platão queria dizer com aquela frase, os principais arrogantes.
Talvez sejamos todos arrogantes não pelo que sabemos, mas pelo que ignoramos. Se pudermos levar a sério essa última frase, melhoraríamos? Alguns sim, outros, mesmo lendo tudo isso, ainda vão continuar chamando arrogantemente os filósofos de arrogantes.
* Vilemar F Costa