Filosofia grega e teologia cristã.
As influências da Filosofia grega sobre a teologia cristã parecem apresentar suas primeiras manifestações logo nas cartas do apóstolo Paulo, sendo, no entanto, mais evidentes a partir do desenvolvimento da Patrística. Mas até onde a teologia se encontra comprometida com o pensamento grego? Quais são os fatores de integração entre uma e outra? A teologia cristã apresenta algo de original?
Segundo Padovani e Castagnola (1994), o pensamento grego pode ser divido em quatro períodos: 1) naturalista, 2) sistemático, 3) ético e 4) religioso. Neste último, o espírito humano procura a solução integral do problema da vida na religião ou nas religiões.
O problema da vida é agudamente sentido, pelo fato de ser profundamente sentido o problema do mal. Deste problema, não se acha, racionalmente, uma explicação plena, e, por conseguinte, se recorre à concepção de uma queda arcana, original, do espírito, de um conseqüente encarceramento do espírito no corpo, e de uma purificação e libertação ascética e mística. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1994, p. 169).
O fator principal de integração entre a filosofia grega e teologia cristã ocorrida nos primeiros séculos da era vulgar, segundo os autores, é a solução do problema do mal, mediante os dogmas cristãos fundamentais da queda original e da redenção pela cruz. Seria essa solução a “grande originalidade prática, filosófica e moral, do cristianismo”. (Ibid., p. 169)
No entanto, se o cristianismo tem por base a fé, cabe questionar: qual a necessidade de uma filosofia cristã? Ou, por que o cristianismo se apropriou tanto da tradição grega? (MARQUES, NESI, 2008, p. 26). Padovani e Castagnola afirmam que pelo fato de ser uma religião, uma sabedoria, o cristianismo pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida, o que é um fator de integração com a filosofia, além de implicar uma elucidação e sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina específica, que é a teologia dogmática. O teísmo herdado dos hebreus, por exemplo, não tem uma justificativa racional, como em Aristóteles, e é da grande tradição especulativa grega que o pensamento cristão tomará essa justificativa. (Ibid., p. 181)
Mas os embates ocorridos dentro da igreja em seus primeiros séculos mostram que a integração entre a filosofia e teologia cristã não foi considerada, pelo menos consensualmente, benéfica ou mesmo desejável, como evidencia a clássica questão de Tertuliano, no século III: “Qual é a relação que existe entre Atenas e Jerusalém? Ou entre a academia e a igreja?” (MACGRATH, 2005, p. 269).
Contudo, havia aqueles que incentivavam um diálogo amistoso e um envolvimento construtivo com o mundo da filosofia secular. Afinal, “todas as verdades não eram também verdades divinas?”. Isso é, “2 + 2 = 4” não é verdade tanto para o cristão quanto para o pagão? Justino Mártir, adotando uma atitude especialmente calorosa diante do platonismo, foi acusado por seus críticos de apenas ter “batizado as idéias de Platão, sem que houvesse interagido com elas de uma maneira suficientemente crítica”. Agostinho comparava a incorporação crítica da filosofia ao cristianismo ao evento do Êxodo, quando o povo judeu, sob a liderança de Moisés, levou consigo as riquezas do povo do Egito. Pois, não fora Moisés “educado em toda a sabedoria dos egípcios”? (Ibid., p. 269)
Mas essa aproximação pode ser encontrada em um período ainda anterior na história do Cristianismo. O simples fato de ser estabelecida uma correspondência entre Paulo de Tarso e Sêneca já é suficiente para apontar a grande influência do estoicismo sobre o Cristianismo (HIRSCHBERGER, 1959, p. 24). No entanto, conforme destaca Pépin (1979, p. 163), nem sempre essa correlação entre o cristianismo e o mundo helênico e, especialmente, o estoicismo, foi abordada com a finura que se deveria esperar.
Segundo ele, os historiadores “durante muito tempo quiseram estabelecer uma simples relação de dependência num único sentido entre alguns aspectos da filosofia grega e o pensamento cristão primitivo”, orientação essa que passou a ser contestada, entre outros, por Clemen, já em 1913 (CHÂTELET, 1979, p. 163). Dessa forma, deve-se também destacar que o Cristianismo foi original em alguns aspectos, e podemos citar dois deles a título de exemplo. Em primeiro lugar, ao se voltar para o método de interpretação alegórica de textos desenvolvidos pelos gregos, sobretudo os gregos “de obediência estóica” (Ibid., pág. 194), no qual “os exegetas judaico-helenísticos beberam abundantemente para apoiar a sua interpretação alegórica da Escritura” (Ibid., pág. 195), Pépin afirma que “a especificidade da alegoria cristã reside no seu objecto, a Bíblia, e no modo de considerá-lo, nos resultados que obtém e no modo de os obter” (Ibid., pág. 198). Neste aspecto, o Cristianismo trouxe uma inovação em relação ao que era praticado em seu contexto helênico.
Em segundo lugar, de acordo com Padovani e Castagnola, a chamada “solução do problema do mal, solução que constitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo – que sentiu profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar – [...] representa a grande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1994, p. 181). Assim, a solução do problema do mal, mediante os “dogmas fundamentais do pecado original e da redenção pela cruz” constituem uma outra originalidade do cristianismo (Ibid.).
A teologia cristã, como toda produção intelectual, apresenta características de um determinado tempo e lugar. Dessa forma, questiona-se: como ela poderia não utilizar categorias gregas do pensamento de sua época para o desenvolvimento de uma teologia e de uma apologética intelectualmente sofisticada? Mas apesar da grande (e por muitas vezes contestada) dependência da teologia em relação à Filosofia grega, ainda assim ela apresentou algo de original, o que é natural se considerarmos a teologia dialeticamente, como uma síntese da religião cristã com a filosofia grega.
REFERÊNCIAS
CHÂTELET, François. História da Filosofia: A Filosofia de Platão a São Tomás de Aquino. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979.
HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia na Idade Média. São Paulo: Editora Herder, 1959.
MACGRATH, Alister E. Teologia sistemática, história e filosófica. 1 ed. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
MARQUES, Carlos Euclides; NESI, Maria Juliani. História da Filosofia II. 1 ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2008.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1994.
*Glauber Ataíde
Estudo Filosofia na UFMG, e acho que o papel da Filosofia não é apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo. Meu fascínio pelas profundezas do inconsciente, essa parte de nós "tão escura quanto o próprio inferno", tem me impulsionado após Freud pelas sendas da Psicanálise. E me chamo Glauber porque nasci no mês seguinte à morte do grande cineasta Glauber Rocha, que eu adoro.
Fonte: https://glauberataide.blogspot.com.br/2009/04/filosofia-grega-e-teologia-crista.html.