Em nome de Deus: a história de Abelardo e Heloísa
A história de minhas calamidades
Pedro Abelardo escreveu A história das minhas calamidades para oferecer consolo a um amigo que passava por tribulações. Seu intuito era aliviar o destinatário, mostrando-lhe que as coisas pelas quais ele próprio tinha passado foram muito piores. Às vezes, ao perceber que há pessoas em situação pior que a nossa, tendemos a nos sentir menos desafortunados. Como diz o velho ditado, "desgraça compartilhada é meia felicidade".
Abelardo inicia fazendo uma breve retrospectiva de toda a sua vida. Conta que nasceu em um lugarejo chamado Le Pallet, situado na entrada da pequena Bretanha, e que desde pequeno se destacava pela vivacidade de seu espírito e pela facilidade no estudo das letras. Seu pai, antes de se tornar soldado, foi "um pouco versado nas letras", de modo que isso o levou a instruir os filhos nos livros antes mesmo dos exercícios militares.
Tendo preferido a lógica e a dialética a todos os ensinamentos de filosofia, o jovem Abelardo travava debates onde quer que passasse, e a facilidade e a destreza com que o fazia encantava a todos. Quando chegou a Paris, se tornou discípulo de Guilherme de Champeaux, que já gozava de certa fama e autoridade na arte da dialética. Abelardo, ciente de suas próprias capacidades e impulsionado talvez pela típica arrogância juvenil, tentava refutar as opiniões de seu mestre, o que causava indignação até mesmo entre seus condiscípulos. Como resultado, Abelardo passou a ser perseguido e foi expulso da escola.
Na mesma época, outro mestre também já tinha um nome de grande reputação: era Anselmo de Laon. Abelardo foi então ter com ele, mas logo percebeu que a fama deste vinha mais pelo acúmulo de experiência do que por um natural brilhantismo. A relação entre ambos foi se desgastando à medida que Abelardo se destacava, de modo que Anselmo passou a perseguir Abelardo, que precisou deixar também o segundo mestre.
Retornando agora para Paris, o filósofo francês finalmente trinfou. Foi admitido como professor no colégio onde havia sido expulso, e suas aulas eram frequentadas por grande número de alunos. O sucesso, porém, fez com que o filósofo se afastasse do estilo de vida que, segundo ele, deveria ser o de um filósofo ou cristão. Abelardo conta que nunca gostou de prostitutas, e que também se mantinha retraído do convívio com mulheres nobres, mas uma jovem iria mudar para sempre sua história.
O amor por Heloísa
Havia em Paris uma "mocinha" chamada Heloísa, muito versada nas ciências das letras, e sobrinha de um cônego de nome Fulberto. A erudição da jovem era incomum para as mulheres da época. Heloísa era dona de um espírito agudo, uma mente brilhante, e sua fama logo correu por todo o reino. Abelardo se interessou por ela e buscou uma forma de se aproximar. Tendo em vista o prestígio de que gozava como professor, sua boa aparência e também sua juventude, o filósofo considerou que não seria repelido por qualquer mulher a quem ele dignasse favorecer com seu amor, e resolveu investir em Heloísa.
Inicialmente eles se corresponderam através de cartas, o que lhes permitiu tocar em assuntos que não teriam coragem se estivessem de viva voz. Abelardo sentiu então que queria se aproximar ainda mais, e entrou em contato com o tio da moça, através de alguns amigos, solicitando alugar um quarto em sua casa. A desculpa era que assim ele ficaria mais próximo da escola onde lecionava, e que sua sobrinha também se beneficiaria deste acordo pois teria aulas particulares com um dos maiores professores de Paris. O tio cedeu facilmente e deixou Heloísa totalmente à disposição de Abelardo. Deu-lhe inclusive permissão para castigá-la, caso ela fosse negligente em seus estudos.
A união entre ambos se deu primeiramente numa casa e, com o tempo, também no espírito. "Assim", conta Abelardo, "com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios do que para os livros."
O comportamento de Abelardo mudou. Dar aulas se tornou um aborrecimento, e sua dedicação à filosofia também diminuiu. As noites acordadas nos braços de Heloísa tornavam difícil permanecer desperto em sala de aula, e suas lições eram repetidas mecanicamente, sem a vivacidade de outrora.
Os amantes são descobertos
Mesmo que o traído seja o último a saber, uma hora ele acaba sabendo. Depois de alguns meses, o tio de Heloísa descobriu, relutante, a relação entre Abelardo e a sobrinha, que se dava dentro de sua própria casa, debaixo do seu nariz.
Para agravar a situação, Heloísa ainda descobriu que estava grávida, e então teve que fugir. Sua fuga foi arranjada por Abelardo em uma noite em que seu tio não estava em casa, e ela foi morar com a irmã de Abelardo, onde seu filho Astrolábio nasceu.
Não cumprindo com sua palavra e buscando vingança para sua desonra, o tio de Heloísa divulgou o matrimônio, e a relação com a sobrinha ficou ainda mais estremecida. Abelardo a enviou então para uma abadia de monjas, a mesma na qual ela havia sido educada quando criança. Isso foi interpretado por Fulberto como outra afronta à família, pois imaginavam que Abelardo queria apenas se desfazer da moça, e então sua desforra foi cruel.
A mutilação
Certa noite, subornando o criado de Abelardo, alguns homens conseguiram entrar na casa do filósofo e lhe castraram, amputando o membro com o qual ele tinha provocado a ira de Fulberto. Dois dos criminosos foram presos, e a punição destes consistiu em ter o pênis e também os olhos arrancados. Um desses infelizes foi o servo traidor.
Na manhã seguinte, com a notícia se espalhando, houve grande comoção, espanto, estupefação. Segundo Abelardo, a lamentação de seus alunos e dos clérigos era mais intolerável que a dor física. A compaixão de que era objeto lhe incomodava mais que a própria ferida.
A humilhação da castração tornou Abelardo uma "aberração" a seus próprios olhos, e então ele decidiu que não mais poderia ensinar em Paris e que entraria para uma ordem monástica. Heloísa seguiu o amante e também ingressou num mosteiro.
Diversos clérigos pediram então a Abelardo que voltasse a ensinar, mas dessa vez por amor a Deus, já que anteriormente ele o fazia apenas pela ambição do dinheiro ou do louvor. Ele aceitou, mas logo surgiram problemas entre o filósofo e os abades, de modo que ele se retirou para uma casinha afastada no campo. Ali acorria uma multidão de estudantes que o local mal comportava, sedenta pelas lições do filósofo e teólogo.
O livro proibido e queimado
Totalmente dedicado agora ao ensino, Abelardo escreveu um livro intitulado Sobre a unidade e a trindade de Deus, com o qual pretendia registrar o que ensinava a seus alunos. Seus desafetos, porém, denunciaram a obra por heresia, e Abelardo foi levado a julgamento. Nada foi encontrado no texto que justificasse a acusação, mas a pressão para condenar Abelardo foi tal que não lhe foi permitido nem mesmo falar em juízo. Seus inimigos temiam que sua grande habilidade oratória pudesse escancarar definitivamente toda a farsa do processo. Nem a pressão dos alunos e nem a fragilidade das acusações puderam impedir a vitória dos detratores de Abelardo. A obra foi condenada e ele próprio teve que lançar seu livro à fogueira.
As perseguições não pararam depois disso. Tanto era o ódio dirigido contra o filósofo que, certa vez, alguns monges chegaram a colocar veneno em um cálice com o qual ele iria celebrar a missa. Em outra oportunidade, envenenaram a comida, e Abelardo só não morreu porque evitou a refeição, que acabou vitimando outro monge. Até mesmo salteadores foram pagos para lhe armarem emboscadas na estrada. Um exemplo de amor cristão.
O final da vida
Abelardo e Heloísa viviam separados já a algum tempo quando o abade de São Dionísio reclamou como propriedade sua a abadia de Argenteuil, expulsando de lá Heloísa e todas as suas companheiras. Ao saber disso, Abelardo lhe ofereceu o Oratório do Paráclito, um prédio deserto que havia sido construído pelo próprio Abelardo em 1122 e que ele havia abandonado ao ser eleito abade de Saint-Gildas-de-Rhuys. A doação incluiu todas as dependências e teve a aprovação do Papa Inocêncio II.
Abelardo passou a visitar as monjas com frequência, fazendo-lhes pregações especiais. Não demorou muito, porém, até que as más línguas começassem a difamá-lo e, a fim de preservar Heloísa e suas companheiras, ele se afastou do Paráclito. A comunicação entre Abelardo e Heloísa continuou através de cartas, as quais sobreviveram e estão disponíveis hoje em forma de livro.
Vingança, inveja, amor, ódio, tragédia: são estes os ingredientes que fizeram da vida de Pedro Abelardo uma verdadeira história de calamidades. Não fosse tudo isso, talvez só nos restasse dele hoje suas obras sobre Lógica, e também não saberíamos que mulher extraordinária e à frente de seu tempo foi Heloísa. A relação entre ambos foi um exemplo do verdadeiro amor platônico, isso é, de um amor que é também carnal, erótico, inspirado por Eros em todos os seus momentos, e no qual um amante melhora a alma do outro através da filosofia, através do amor ao saber. Se o sofrimento de um artista pode ser sublimado para formar belas obras de arte, aqui foi um sofrimento real que produziu uma magnífica história de amor.