Destino, Liberdade e Ética
Provavelmente, em algum momento de extrema angústia, perplexo, você ergueu os olhos aos céus e, munido da mais aguda e desperta ratio, empreendeu uma luta hercúlea, buscando explicação lógica para uma pequena ou portentosa tragédia pessoal.
Os tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, versaram sobre as atemporais mazelas da vida. Esses premiados literatos registraram de forma magistral o inexorável peso do Destino e dos caprichos Fortuna (Tyché) sobre o Homem.
Do alinhavar da predestinação implacável à paulatina descoberta do Homem enquanto portador de uma alma (psyche) em relação com os demais, a tragédia grega assinala a aurora do Ethos – hábito, conduta – que culmina em nosso ‘habitat’.
Será então, embalada por esse avanço (ainda que tímido) na liberdade de agir que emergirá uma nova conduta, um novo Ethos.
Como reitera o filósofo Henrique Claudio de Lima Vaz, “a descoberta da alma assinala a emergência de uma nova figura do indivíduo no centro da reflexão ética.”. Ao presunçoso, mas desamparado filho da physis (natureza), logra êxito o lógos verdadeiro.
Reféns dos tais “desígnios” (Destino/Fortuna), tornamo-nos também, filhos da virtude e da razão.
Em contraponto às inescrutáveis razões da physis, onde o indivíduo sofístico erige e circunscreve o palco do Ethos movido pela cega vontade de poder (subjugado pela hybris, a desmedida e, portanto refém do Destino), desponta o herói (ou heroína, como Antígona) e, na sequência, emerge o ponderado indivíduo socrático, cujo Ethos é circunscrito no agir virtuoso, na ação justa, portanto, razoável.
Lima Vaz aponta que na ação razoável, “que é igualmente a práxis justa e virtuosa, deverão conciliar-se desejo, razão e liberdade.” Essa possibilidade fora negada ao herói trágico, pois, encapsulado por seus desejos e paixões, o não deliberar restringia seu potencial de liberdade.
Os “nós” desse entrelaçamento são didaticamente expressos pelo filósofo Mario Sérgio Cortella: “Ética é o conjunto de princípios e valores que usamos para decidir as três grandes questões da vida: quero [desejo]? devo [razão]? posso [liberdade]?”.
Cortella então prossegue, chamando a atenção para o fato de que: “Tem coisas que eu quero, mas não devo; que eu devo, mas não posso e que posso, mas não quero (...). Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve.” Seria perfeito!
E, se mesmo agindo somente depois de prudente deliberação, de forma sensata, segundo a excelência do Bem, a “realidade enigmática e hostil do mundo e da vida”, o Destino, se opor à ação virtuosa, revelando-se cego e fatal? Noutras palavras, “como ousar prolongar o caminho da Ética como ciência do ethos no interior da obscuridade impenetrável que envolve a temerosa montanha do Destino?”, indaga Lima Vaz.
Essa interrogação, diz ele, encontrará no mundo antigo a resposta da mais impressionante grandeza e da mais desoladora resignação: “quando o Estoicismo tiver elevado a razão do Sábio à própria altura do Destino, então transfigurado em pronoia, providência racional.”.
O que a reflexão ética platônico-aristotélica busca estabelecer é o melhor ajuste possível entre lógos e Ethos.
Destino e Fortuna acabam obscurecendo esse ajuste, pois são duas faces incompreensíveis da realidade: “de um lado, a rígida cadeia da necessidade [Destino] que parece ligar seres e acontecimentos nos vínculos de uma infringível ordem universal; de outro, a Fortuna volúvel que distribui de maneira imprevisível a sorte de cada um.”.
Quando o imponderável se apresenta, mesmo diante da conduta sensata do justo e, surpresos indagamos: “Por quê?” é que “a primeira face [Destino] ergue-se enigmática”, diz Lima Vaz.
Já a segunda face (Fortuna), também por não obedecer a uma lógica alcançável “ameaça com a sem-razão de uma total contingência as razões do agir segundo a virtude”.
Como garantir àqueles que agem virtuosamente o justo direito a uma felicidade “que se sobreponha à inelutabilidade do Destino e à inconstância da Fortuna?”.
As primevas reflexões sobre Destino e Fortuna nasceram no mito arcaico ANTES “de encontrar no discurso filosófico o seu desaguadouro natural”. As tragédias explicitam o confronto “entre o pungente sentimento de impotência em face do Destino e da Fortuna e a inquebrantável energia e a força criadora com as quais o homem grego enfrenta os desafios da ação (práxis)”. Desde então, o homem segue “plasmando a sua existência e organizando o seu mundo segundo as normas da razão (lógos) e o alvo da excelência (areté)”.
Quando a Paideia (pedagogia) das tragédias tem por alvo a excelência (areté), diz Werner Jaeger, “mostra que a experiência do Destino e da Fortuna, longe de alimentar um resignado fatalismo na alma grega, estimulou todas as suas energias para responder, com a criação da Ética e da Política, à ameaça do niilismo moral (...)”.
Nas tragédias áticas trava-se o embate entre Razão X Destino/Fortuna. Ou, como poeticamente se expressa Lima Vaz: “o entrecruzamento da linha horizontal da vida traçada pelo precário e trabalhoso saber humano e a linha vertical do majestoso desígnio divino que desce das alturas de uma inalcançável transcendência”. Eis a essência do mistério que envolve nossas angústias.
A famosa inscrição no Templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”, diz ele, “conduzirá ao recesso mais íntimo do indivíduo, que a tradição consagrará com o nome de ‘consciência moral’”.
Mas, quais são os remédios capazes de curar dos males da existência quando, mesmo sendo razoáveis, virtuosos e dignos, surpreendidos pelo Destino (Moira), deparamo-nos com assombrosos obstáculos, aparentemente intransponíveis?
Lima Vaz afirma que essas interrogações são decisivas e que acompanham a formação do pensamento ético e em torno das quais se adensa, pouco a pouco, a ideia de uma ‘vida interior’ do virtuoso, da alma (psyche) no sentido socrático e, será no âmbito dessas ideias que o Destino e a Fortuna serão finalmente compreendidos pelas razões de uma “Razão superior”.
Para o filósofo, é possível “descobrir no homem aquela parte de seu ser – a melhor – pela qual ele é capaz de libertar-se da cadeia dos males e elevar-se à verdadeira eudaimonia [felicidade] (...) pela convicção de que a práxis obediente à norma do lógos torna-se capaz de vencer os males advindos do Destino”.
Consciência moral – co-autoria, responsabilidade dos homens, – não somente capricho dos deuses embasa a tal “consciência tranquila, limpa”. Assim, alcançamos o que ele chama de “uma nova e superior forma de felicidade que tenha a sua sede na interioridade racional da psyche [Alma] e seu fundamento no lógos verdadeiro”.
Será na estrutura lógica do agir humano que a liberdade – contraprova do Destino – terá assegurado seu lugar: “À luz do Sol do Bem (...) a sombra do Destino recua (...).”, e isso, repito, não é de pouca monta.
Destino e Fortuna são instáveis fluxos dispensadores de penas e alegrias, de onde é possível emergir a grandeza e nobreza inata do homem, capaz de aprender com o sofrimento. Porque faz parte.
Luciene Felix
Fonte: Blog Conhecimento Sem Fronteiras
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