Dersu Uzala na Copa
No futebol “a bola é um reles, um ridículo detalhe” – escreve Nelson Rodrigues, para quem o que interessa é “o ser humano por trás da bola”. O que está em jogo no gramado, portanto, “não é a diversão lúdica, mas a complexidade da existência”. Se for assim, se Nelson tem razão como quer o cronista Joaquim Ferreira dos Santos, então o campeão mundial da Copa já é o Japão, que deu um show de vida lá na Arena Pernambuco contra a Costa do Marfim e, depois, na Arena das Dunas, em Natal, contra a Grécia.
O Japão perdeu um jogo e empatou o outro dentro do campo, mas nas arquibancadas ganhou os dois de 10 x 0. As imagens reproduzidas nas redes sociais não deixam dúvidas. Enquanto torcedores do Brasil e de outros países se retiravam dos estádios, deixando montanhas de lixo, sem sequer olhar para trás, os japoneses recolhiam discretamente garrafas e copos de plástico, papel, bandejinhas de isopor, latas de cervejas e de refrigerantes, canudinhos, restos de alimentos, embalagens usadas, enfim todo lixo produzido por eles.
Esse gesto civilizatório foi o legado mais eloquente da Copa. Com o exemplo, o japonês ensina ao mundo como tratar com respeito e civilidade o espaço público, como se relacionar com o meio ambiente e com os outros habitantes do planeta. A coleta do lixo, feita em sacos com a imagem impressa do sol nascente, foi uma lição de ética e de cidadania. Lembrei cena antológica de rara beleza do filme Dersu Uzala dirigido pelo cineasta japonês Akira Kurosawa, em 1975, baseado no diário de um capitão russo. Na torcida nipônica – diria Nelson Rodrigues – todos eram Dersu Uzala.
O filme conta a história de uma expedição científica do exército tzarista pela bacia do rio Usurri, entre 1902 e 1907, comandada pelo capitão Vladimir Arsenyev, com a finalidade de classificar as espécies existentes nas estepes da Sibéria e realizar trabalhos de topografia. O capitão faz amizade com um caçador nativo, Dersu Uzala, um velho sábio que trata o sol, as estrelas, a água, o fogo, o vento, a neve, as árvores e os animais como pessoas. Tal qual um tcheramoiguarani, ele ouve todas essas “pessoas” que vivem na taiga siberiana – a maior floresta fria do mundo - e conversa com elas.
Akira Kurosawa vai mostrando como se tece a amizade do capitão russo com o caçador, que lhe serve de guia não apenas pelas montanhas da Mongólia, mas também pelos sendeiros da vida. Depois de uma tempestade de neve, os dois conseguem se refugiar numa cabana no meio da floresta, onde descansam. No dia seguinte, antes de partirem, Dersu, o homem da floresta, abastece o fogão com lenha, separa um pouco de sal e estoca alimentos não perecíveis na cabana. Divide assim o pouco que tem para surpresa do capitão russo, o homem da cidade, que lhe diz:
- Dersu, isso é um desperdício. É inútil deixar mantimentos aqui, nós nunca mais voltaremos a esse lugar.
O caçador, então, explica que não é para eles dois, mas para uma pessoa qualquer, um eventual viajante, desconhecido, que chegue ali cansado e com frio, em busca de abrigo, de calor e de alimento. Compartilhar o pão não necessariamente para retribuir o que eles tinham encontrado, mas pelo prazer da partilha.
O capitão russo, um homem de ciência, civilizado, com escolaridade, fica perplexo e dividido entre, de um lado, o princípio da “farinha pouca meu pirão primeiro” que ele traz do mundo urbano e, de outro, o preceito do pirão compartilhado, que é único sinal humano de vida, como canta o poeta Aníbal Beça num haicai: “Apenas num gesto / o homem é capaz de vida - / chibé repartido”.
A ética da solidariedade, do desprendimento, do pensar no outro está presente tanto no comportamento do velho caçador desescolarizado, que vive no mundo da oralidade e que detém os conhecimentos da vida, quanto na coleta silenciosa do lixo realizada pelos torcedores nipônicos.
O cineasta japonês Akira Kurosawa rodou as cenas de Dersu Uzala em 1974, em condições adversas, depois de haver tentado o suicídio três anos antes, cortando a própria garganta e os pulsos numa forte crise de depressão. Estava desencantado com o ser humano. Nesse contexto, o filme teve o efeito daquele poema de Allen Ginsberg: uma florzinha solitária desabrochando em cima de um monte de merda. É uma reconciliação com a vida, um canto de esperança, que desperta sentimento similar ao provocado pelas imagens dos japoneses coletando o lixo no estádio.
- Eu sou bra-si-lei-ro, com mui-to or-gu-lho, com mui-to a-moooor – grita a nossa torcida embalada para a guerra. Resta saber – isso não é explicitado - do que é que sentimos orgulho. Numa sociedade patriarcal como a brasileira, parasitária, tatuada por quatro séculos de escravidão, estamos acostumados a emporcalhar tudo, ordenando que garis limpem nossa sujeira. Nossas ruas com bueiros entupidos e os banheiros e salas de aula de nossas universidades públicas são testemunhas disso. Lá, o exército do “pessoal de limpeza” trava diariamente uma batalha perdida, registrando o rotundo fracasso da escola.
Sem patriotadas, o lema dos japoneses, talvez muito mais significativo do que “não vai haver copa”, foi o silencioso “não vai haver lixo”. A corrente nipônica pra frente nos deu uma lição, que já rendeu os primeiros frutos. Na Fifa Fun Fest segunda-feira, em Copacabana, no Rio, turistas alemães, espelhados no exemplo vindo do Oriente, não apenas recolheram o lixo da praia, mas incentivaram outros frequentadores a ajudá-los.
Esse gesto de extrema delicadeza e refinamento, embora solitário, mostra que civilização não é abrir estradas, construir usinas, erguer pontes e viadutos, fabricar aviões, automóveis e robôs, clonar seres vivos. É saber se relacionar com o outro: gente, planta, animal, meio ambiente. É a qualidade dos gestos que torna a condição humana possível. Enquanto houver alguém juntando o lixo e nos deixando envergonhados de nossa imundície, o mundo não está totalmente perdido. Uma florzinha brota no esterco.
* José Ribamar Bessa Freire
Publicado originalmente no "Diário do Amazonas".