Convite à reflexão

Há algum tempo ouvi de um irmão maçom em uma palestra online o seguinte pensamento:
“A Maçonaria é um repositório de conhecimentos histórico e filosófico das civilizações do mundo!”

É sobre esse pensamento que convido a reflexão pois a Maçonaria incentiva seus membros a examinarem o possível conteúdo de verdade existente nas afirmações que costumeiramente são feitas a respeito da instituição maçônica.

Uma questão que imediatamente surge é:
Onde estão registrados esses supostos conhecimentos?

Dada a imensa quantidade de conhecimento histórico/filosófico das diferentes civilizações e culturas mundiais, os rituais e instruções maçônicos precisariam ter uma quantidade de volumes comparável aos da Enciclopédia Britânica!
Então, o que se pretende dizer com ao pensamento citado?

Vamos usar um exemplo para demonstrar que “Não é bem assim”. Rituais de algumas obediências costumam citar “o Trivium e o Quadrivium”, como parte dos ensinos maçônicos.

Ora, as chamadas Sete Artes Liberais: Gramática, Dialética(Lógica), Retórica, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia, eram conhecidas desde a Antiguidade.

O estudo de texto literário por meio de três ferramentas de linguagem pertinentes à mente constituíam o chamado Trivium: Gramática, Dialética (Lógica) e Retórica, enquanto Quatro ferramentas relacionadas à matéria e à quantidade formavam o Quadrivium : Aritmética, Geometria, Música,  e Astronomia.

Já por volta do ano 800, com a formação do Sacro Império Romano Germânico de Carlos Magno criaram-se escolas onde filhos de nobres eram educados nessas disciplinas.

Com o advento das universidades na Europa a partir do século XII, as artes liberais ganharam um aspecto preliminar, preparatório, servindo de iniciação aos graus superiores (Artes, Medicina, Direito, Teologia). Mas, em todo esse período, o ensino era destinado a poucos, sendo a maior parte do povo totalmente iletrada.

Voltando ao contexto atual: A Maçonaria ensina de fato as artes liberais? Algum dos irmãos aprendeu gramática em loja? Ou aritmética? Ou Geometria? E quanto a música e astronomia, algum ensino específico? A resposta para essas questões é uma só – NÃO!

É verdade que alguns graus apresentam certa reflexão filosófica sobre aspectos limitados da ciência:

“Que ciências deve conhecer um Mestre Arquiteto?”
Pergunta determinado grau do REAA. E a resposta:

“Aritmética, Geometria, Trigonometria, Ótica, Catóptrica, Dióptrica, Desenho, Perspectiva, Mecânica, Estática, Hidráulica,Geografia, Cronologia, Maçonaria (Ofício do Pedreiro), Carpintaria, Medidas, Física, Música e Arquitetura”.

Ora, certamente, o iniciado nesse grau não dispõe desses conhecimentos. Mas continua o texto:
“A aritmética é um atributo de um bom Maçom, porque ensina a multiplicar sua benevolência e sabedoria em favor de todos os seus irmãos (…)” “A geometria é um atributo de um bom Maçom porque sempre deve medir suas ações com a linha da justiça, circunscrever seus desejos com o limite da razão E estar satisfeito com o que possui, sem cobiçar o alheio (…)”
“Óptica, catóptrica e dióptrica são atributos do bom Maçom porque o homem deve ver suas faltas bem aumentadas, e, ao mirar os seus irmãos, deve usar lentes que as diminuam até julga-las imperceptíveis.”
“Hidráulica:  A alma de um maçom será um canal de mansa e plácida corrente e não deve esfriar-se nunca por calúnias, ambições ou loucuras da juventude (…)”

E continua o texto associando reflexões filosóficas as disciplinas técnicas citadas.
Ninguém, em sã consciência diria que, ao apresentar os citados comentários filosóficos a Maçonaria está ensinando aquelas disciplinas. De modo semelhante, outros conteúdos foram enxertados nas instruções, como numerologia, cabala e hermetismo. Partindo desses enxertos, alguns autores desenvolvem seu pensamento, indo muito além da mera citação apresentada e consideram todo o seu desenvolvimento como ensino maçônico  presente na instrução citada.

Fui iniciado em 1984 e exaltado em 1986. Na época havia um texto no final do ritual de mestre, com o seguinte título: “Para leitura e meditação em casa.” O texto era um confuso resumo de conceitos cabalísticos sobre árvore da vida, setenário, etc, que alguém tinha considerado interessante para ser lido pelos mestres, e o inseriu no ritual. Anos mais tarde, decidiu-se formatar esse texto segundo as costumeiras instruções, distribuindo partes do texto entre luzes e oficiais para sua leitura ritualística, surgindo assim, mais uma instrução de mestre. Tenho sérias dúvidas a respeito da possível compreensão dessa nova instrução por alguém que nunca tenha lido sobre o tema, que agora faz parte das instruções de toda uma geração de Mestres Maçons. Assim foram introduzidas citações de hermetismo e conceitos ocultistas nos graus simbólicos, desconhecidos dos rituais originais utilizados por mais de um século desde a formulação do rito. Essas inserções/enxertos já estão atualmente completando um século de existência e para muitos representam a ortodoxia maçônica.

Cabala e Hermetismo são conteúdos amplos a profundos, que demandam anos de estudo sério e práticas específicas, dentre de grupos de estudos específicos desses temas, que são completamente desvinculados da instituição maçônica e consideravelmente mais antigos.  É certo que cada maçom é livre para estudar o tema que lhe interessar. Assim, aqueles que tiverem sua atenção despertada pelas citações existentes, poderão procurar organizações e grupos de estudos existentes que por anos vem ministrando esses ensinos, consistentemente e formam instituições sem qualquer conexão com a Maçonaria tradicional.

Neste contexto é necessário citar a obra de Albert Pike “Moral e Dogma”. Nos EUA, desde o século XIX ela era entregue aos iniciados, mas só alcançou o Brasil na década de 90 do século passado. A obra apresenta interpretações místico/esotéricas de todos os graus do REAA. Ninguém deveria ler qualquer parte  dessa obra, sem antes ler, atentamente seu preâmbulo, no qual Pike alerta:
“Ao preparar essa obra o Grande Comendador foi igualmente autor e compilador, uma vez que extraiu metade do seu conteúdo das obras dos melhores escritores e dos pensadores mais filosóficos ou eloquentes. Talvez tivesse sido melhor e mais aceitável, se tivesse  extraído mais e escrito menos (…)”

E mais adiante, próximo do final do prefácio:
“Todos estão completamente livres para rejeitar e discordar de qualquer coisa aqui que lhe pareça falsa ou infundada (…)
“ Obviamente as antigas especulações teosóficas e filosóficas não são incorporadas como parte das doutrinas do Rito; mas porque é de interesse saber o que o Intelecto antigo pensava sobre esses assuntos”(…)
Tendo em mente essas ressalvas, o leitor está pronto para enfrentar as 891 páginas (Na edição mais recente da Editora No Esquadro) dessa monumental obra.

O místico suíço Oswald Wirth, na introdução de seu livro “O ideal Iniciático” aborda brevemente o tema Maçonaria versus ocultismo/esoterismo:
“A Franco-Maçonaria não herdou crenças determinadas nem doutrinas concretas, mas, sim, apenas seus procedimentos de sã e leal investigação da Verdade (…).

Pedir a admissão na Franco-Maçonaria, não pode ser questão de esperar a comunicação destes fatos misteriosos que tanto intrigam os aficionados em ciência oculta.

 Os Franco-Maçons interessam-se individualmente por todos os conhecimentos humanos, e podem ser, se for o caso e segundo lhes apraz, ocultistas, teósofos, metapsiquistas, etc., mas a Franco-Maçonaria abstém-se, em absoluto, de ensinar algo dessa ordem de ideias.

 Não tem por missão resolver os enigmas que se apresentam à mente humana e não se declara a favor de nenhuma das teorias explicativas dos fatos sensoriais.”

É dentro do contexto dessas inserções que surgiu o pensamento comentado no início, que alguns levam incrivelmente mais longe, afirmando que “Tudo é Maçonaria”. Ora, se tudo é maçonaria, perdem-se suas características essenciais, e NADA mais é Maçonaria!

Obviamente, ninguém chega a essas conclusões radicais.  Facilmente encontram-se na internet textos que fazem afirmações sobre a Maçonaria que todos hão de concordar, não correspondem à prática maçônica cotidiana. Um exemplo típico são as acusações de prática de satanismo. Logo, existe sim a ideia do que é e do que não é Maçonaria. Mas, dada a multiplicidade e permanência de enxertos, estamos sendo conduzidos à constatação que, ao menos no Brasil atual existem diferentes conteúdos que são entendidos por diferentes grupos como sendo maçonaria. Na prática, isso implica na existência de diferentes maçonarias sendo implementadas, com alguns aspectos em comum entre si, mas que seriam irreconhecíveis pelos formuladores originais da instituição maçônica. O QUE SE DEVE (PODE) FAZER A ESSE RESPEITO?

Eleutério Nicolau da Conceição
Mestre Maçom (Instalado), obreiro da ARLS∴ "Alferes Tiradentes" Nº 20, oriente de Florianópolis/SC, da GLSC; membro da Academia Catarinense Maçônica de Letras; membro fundador da Academia Maçônica Virtual Brasileira de Letras (2021); autor das seguintes obras: "Maçonaria, Raízes Históricas e Filosóficas"; "Maçonaria no Mundo e na Sociedade"; "O Grau de Aprendiz e seus Mistérios". Em coautoria com Walter Celso de Lima: "Dueto Sobre Sabedoria, Força e Beleza"; "Reflexões Históricas e Filosóficas".

Oriundo do Blog: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/