Arte (d)e existir
O exercício da existência não é tarefa das mais simples. Freud, em O Mal-Estar na Civilização, afirma que “o princípio do prazer estabelece a finalidade da vida”, mas esse “programa está em desacordo com o mundo inteiro”.
Ele enumera as três principais fontes de sofrimento: o corpo, “fadado ao declínio e à dissolução”, ainda atravessado pela dor e sacudido pelo medo; o mundo externo, que nos pode abater com “forças poderosíssimas, destruidoras”; e, por fim, e mais importante, “as relações com os outros seres humanos”, que nos constrangem e põem limites civilizatórios à conquista do prazer a qualquer custo.
Para suportar as limitações ao princípio do prazer, Freud cita três estratégias: “derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela”. As ciências participam da primeira e as drogas constituem a terceira. É da segunda categoria que gostaria de falar um pouco mais, até por conta da realização pela Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória do III Colóquio Psicanálise e Arte.
“As gratificações substitutivas, tal como a arte, são ilusões face à realidade, mas nem por isso menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que tem a fantasia na vida mental”, avalia Freud. “Nenhum traço nos parece caracterizar melhor a civilização do que a estima e o cultivo das atividades psíquicas mais elevadas, das realizações intelectuais, científicas e artísticas, do papel dominante que é reservado às ideias na vida das pessoas”, observa.
A partir de Freud, Lacan caminhou, mas sempre na mesma trilha de que a felicidade plena e plenamente alcançável é uma impossibilidade, ainda que se possa conquistar uma existência pontuada por desejos e conquistas. Para Lacan, uma das nossas principais marcas é o vazio escavado pela perda do objeto e das referências de amor primeiro.
Ademais, somos humanos pela linguagem, nos limites da linguagem com tradutora dos fatos, e nas limitações do seu uso frente ao inconsciente e ao traumaticamente interditado no processo civilizatório. Isso equivale dizer que somos o que conseguimos elaborar sobre nós mesmos, mas o que resta indizível por alguma razão também nos conforma. Somos as palavras que temos, as faltas das nossas palavras, as palavras que nos faltam e as palavras que faltam.
Ou seja, somos sujeitos em eterna incompletude, seja pela fragilidade e transitoriedade do corpo, seja pelos constrangimentos inelutáveis da convivência civilizada, seja pelo vazio da perda do objeto de amor inaugural, seja pela contingência de estarmos submetidos a uma existência simbólica condicionada por limitações várias.
Resta concluir que existir é uma tarefa linguageira. Não obstante, o êxito da escrita de si e do Outro seja sempre deficitário, não todo, pois, para além do simbolizável, há o universo indizível, intraduzível, insuportável à narração/leitura do ser. Mas, apesar do insucesso certo, não nos resta outra via que juntar letras e palavras para compor nossa ficção de viventes. Nesse caminho, seja como uma “gratificação substitutiva”, diante da miséria do existir, seja como um modo de expressar das formas mais distintas possíveis os malestares, o vazio e/ou o impossível de tudo dizer que nos conformam, a arte é necessária porque estar vivo não basta, conforme já simbolizaram os poetas.
José Antonio Martinuzzo é doutor em Comunicação, Pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.
Publicado originalmente na “Tribuna” - Vitória/ES.