A Profecia de ouro de tolo.
Lá se vão quarenta anos do desabafo de Raul Seixas (1945 – 1989) contra as críticas que recebeu por ter feito a música “Ouro de Tolo”, com a qual criticava as ufanistas aspirações de consumo da classe média, no momento em que o “milagre econômico” da ditadura militar revelava-se um embuste de extremada concentração de renda: “Quando eu fiz Ouro de Tolo / Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse / Mas eles só vão entender o que eu falei / No esperado dia do eclipse”, bradou em “As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”, terceira faixa do LP Gita (Philips, 1974).
O cantor baiano estava no auge das suas parcerias com o escritor carioca Paulo Coelho, à época seguidores da doutrina do bruxo inglês Aleister Crowley (1875 – 1947), pregador do aforismo “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”. A canção de Raul, popularizada no ano anterior pelo LP Krig-há, Bandolo!, que significa “Cuidado, o inimigo está vindo!”, nos quadrinhos da revista Tarzan, mexeu com uma sociedade hesitante entre a ideia de sucesso social – representada pelo emprego, moradia e poder aquisitivo – e a frustração resultante do sentimento de perda de uma conquista.
A ruptura com o processo alienante de um sistema que vinculava poder de consumo à realização pessoal estava na essência da composição de Raul Seixas. Em uma interpretação decepcionada, ele argumenta que devia estar contente, alegre, satisfeito, sorrindo e orgulhoso, e devia agradecer ao Senhor, por ter um emprego, ser um dito cidadão respeitado, ter conseguido comprar um carro do ano, morar em um bairro decente e, finalmente, ter vencido na vida, depois de ter passado fome. Mas, confessava-se abestalhado ao se dar conta de que tudo isso era uma grande e perigosa piada.
Essa situação vivida e rejeitada por Raul Seixas é o que o sociólogo estadunidense Charles Wright Mills (1916 – 1962) identificou como um estado em que as pessoas sentem que suas vidas privadas são uma série de armadilhas: “Suas visões e seus poderes estão limitados às cenas em close-up de trabalho, família, vizinhança; em outros meios, elas se movem à custa de outros e permanecem espectadoras” (A Promessa, Zahar, Rio, 2009). Ele partiu do princípio de que os fatos sociais precisam ser observados também como fatos individuais: quando classes ascendem ou decaem, uma pessoa é empregada ou desempregada; quando a taxa de juros sobe, alguém ganha novo ânimo ou vai à falência.
A dificuldade de percebermos o “ouro de tolo” ocorre porque as pessoas “não costumam atribuir o bem-estar que gozam aos grandes altos e baixos da sociedade em que vivem” (p.82). A tese de Mills é que toda pessoa vive uma biografia e que ela a vive dentro de uma sequência histórica, mas em geral não se atenta para o que essa conexão significa para os tipos de cidadãs e cidadãos que estão se tornando e para os tipos de feitura da história de que poderiam fazer parte.
Raul Seixas estava certo, pois a profecia de “Ouro de Tolo” está mais atual do que nunca. Tomando o conceito de “imaginação sociológica” de Mills para o Brasil do consumismo como sinônimo de ascensão social, chegamos ao abismo dos exageros. Os inconformados com os paradoxos da relação que ora tangencia o poder de compra, ora roça o viver bem, podem até fazer coro com o Maluco Beleza quando ele reconhece que conseguiu tudo o que quis, mas se pergunta: “E daí?”. E responde: “Eu tenho uma porção / De coisas grandes pra conquistar / E eu não posso ficar aí parado”.
As mudanças na melhoria das condições de consumo das pessoas mais pobres no Brasil não se comparam com aquelas do “milagre” da ditadura. Considerando a mobilidade de classes econômicas e a força do mercado interno, avançamos muito. O que não conseguimos ainda foi dar um salto de perspectiva. No dizer de C. Wright Mills, nosso protagonismo não saiu dos enquadramentos fragmentados dos assuntos, para podermos romper como Raul Seixas: “Eu que não me sento / No trono de um apartamento / Com a boca escancarada / Cheia de dentes / Esperando a morte chegar”.
Os olhos brasileiros estão mais voltados para o último lançamento de celular, para o colecionar de cartões de crédito, o carro novo, a tevê paga, o entretenimento de massa, shoppings, novidades na farmácia e outras simbolizações consumistas. Há uma infeliz convergência da coisificação desejante, do “ouro de tolo”, entre indivíduos e sociedade. Nem para “Se olhar no espelho / Se sentir / Um grandessíssimo idiota”, como expressa Raul em sua música de descontentamento com os modelos de felicidade da sociedade de consumo.
Raul Seixas ironizou os que criticaram a sua revolta cantando “Ah!, mas que sujeito chato sou eu / Que não acha nada engraçado”. Como ele, certamente muitos brasileiros, tendo oportunidade de sair do close-up da rotina, agiriam em favor de mais lazer, mais oferta cultural e mais vida coletiva; talvez algo mais próximo do ponto de interseção entre biografia e história, levantado por Mills, onde as coisas e as relações não precisassem ser medidas por “ouro falso”.
* Flavio Paiva
Originalmente publicado no Jornal OPOVO.