A morte e a memória

Sócrates dizia que o medo da morte é ignorância, presunção de saber. Afinal, quem poderá dizer se a morte não é algo melhor que a vida? E se não sabemos isso, por que então temê-la? Assim nos diz o ateniense:
 
“Pois que, ó cidadãos, o temer da morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maioria dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei”. (Platão, Apologia de Sócrates)
 
Mas o que exatamente tememos na morte, se a reflexão nos mostra que este medo é irracional, remontando suas determinações às mais profundas e inescrutáveis regiões de nossa estrutura humana? Uma tentativa de resposta a essa questão, ainda de forma mítica, vem dos próprios gregos. Em um texto sagrado órfico (século IV a.C.), o qual chegou até nós através de tábuas descobertas só por volta do século XVIII, encontram-se instruções aos mortos que chegassem ao Hades:
 
“Você encontrará uma fonte à esquerda do Hades, e ao seu lado, um cipreste branco. Nem mesmo se aproxime dessa fonte. Você encontrará outra, a do Lago da Memória, jorrando água fresca. Na frente dela há guardas. Você deve dizer: ‘Sou filho da Terra e do Céu estrelado, vocês sabem disso. Tenho sede e pereço. Dêem-me da água fresca que jorra do Lago da Memória.’ E eles próprios lhe darão de beber da fonte divina, e então você reinará junto aos outros heróis”.
 
Notamos neste trecho que o objetivo final da instrução é mostrar como encontrar e beber da fonte da memória (Mnemósine) para viver junto aos heróis, passando ao largo da primeira fonte (que nem mesmo é nomeada), geralmente considerada como a fonte do esquecimento (Lethe). O pior da morte, então, não parece ser a mera passagem ao Hades, mas sim o esquecimento.
 
Esse mesmo esquecimento é o que parece ter sido evitado por Aquiles ao escolher lutar na guerra de Tróia. Não nos relata a Ilíada, de Homero, que Aquiles preferiu ser lembrado após sua morte - mesmo tendo que morrer cedo para isso - a ser esquecido pela posteridade, o que lhe renderia no entanto muitos mais anos de vida? 
 
Aquiles tinha duas opções: deixar a guerra e envelhecer em paz, vivendo muitos anos mas sendo esquecido após sua morte, ou continuar lutando, morrer jovem mas ser lembrado por inúmeras gerações pelos feitos que lá realizaria:
 
“Tétis, a deusa de pés argentinos de quem fui nascido, já me falou sobre o dúplice Fado que à Morte há de dar-me; se continuar a lutar ao redor da cidade de Tróia, não voltarei mais à pátria, mas glória hei de ter sempiterna; se para casa voltar, para o grato torrão de nascença, da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa conseguirei, sem que o temor da Morte mui cedo me alcance”. (Ilíada IX, 410-416).
 
Essa concepção grega parece dizer que, de alguma maneira, sobrevivemos à nossa própria morte quando somos lembrados. O pior, então, não é morrer, mas ser esquecido. Pois, se não podemos evitar a morte, pelo menos temos algum controle sobre nossos feitos que podem transcender nossa existência.
 
Uma outra maneira de transcender a própria finitude residiria, de acordo com Platão, na geração de filhos. A procriação representa o mortal tentando imitar o imortal, impulsionado por Eros. Todos os seres da natureza, ao se reproduzirem, estão sobrevivendo a si próprios em seus filhos:
 
"... a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho...” (Platão, O banquete)
 
Mas se nossos filhos são, de alguma forma, nossa presença continuada neste mundo, mesmo eles não garantem que ainda seremos lembrados após várias gerações. 
Isso é ainda mais claro para nossa cultura hoje: a maioria de nós tem escasso ou nenhum conhecimento sobre nossos ascendentes a partir da terceira ou quarta geração.
 
Por isso o homem busca se transcender também através do trabalho (não alienado) e das criações artísticas. Ao se objetivar ou se exteriorizar em suas obras o homem supera a si próprio e sobrevive a seu próprio corpo. 
O objeto gerado pelo trabalho, assim como a obra de arte, é uma exteriorização do homem, uma objetivação deste. 
O homem cria um objeto humano e se realiza enquanto humano nessas exteriorizações.
 
E talvez seja essa a razão do leve apaziguamento que experimentamos em nossa angústia de morte quando percebemos que muitos dos que já morreram ainda são lembrados por seus feitos. 
Sentimos com isso que, de alguma maneira, mesmo após nossa morte, poderemos continuar neste mundo. A morte não é completa enquanto ainda existir quem de nós se lembre.
 
* Glauber Ataíde
Originalmente publicado no Blog: https://glauberataide.blogspot.com.br/