A BELEZA DA DÚVIDA CARTESIANA
Não devemos confundir filosofia com teologia, escatologia e telefinalismo.
Tenho um dicionário de Francisco Silveira Bueno – em 9 volumes – muito superior ao Aurélio, que diz textualmente: "Escatologia = estudo do que acontecerá depois do fim do mundo". Pode alguém imaginar maior adivinhação que esta? Alguém, algum dia, seria capaz de fazer afirmações em torno disso? Só mesmo delirando. Mesmo porque não há, sendo o mundo visto como o Universo, a menor probabilidade de que tal venha a acontecer.
O Universo nunca terá fim. Porque ele é a própria existência. A única coisa que vai acontecer com absoluta certeza é o fim da vida no planeta Terra. E esse evento só poderá ocorrer de três maneiras: uma – a mais garantida – por motivos astrofísicos, quando o Sol queimar sua última molécula de hidrogênio e se transformar – como de fato é previsto pela ciência (e não adivinhado) – numa gigante-vermelha que englobará e incinerará todos os planetas interiores (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte), fato que já aconteceu com outras estrelas, Antares, da constelação do Escorpião, incluída. Outra hipótese desastrosa seria o eventual choque com um meteorito de grandes proporções, uma colisão acidental de astros que também já ocorreu alhures. E a última – que depende do comportamento humano – se a humanidade se autodestruir num conflito nuclear de proporções planetárias. Isso, sim, dizimaria a espécie humana e a maior parte da vida animal e vegetal na superfície. Pronto! Está dito o que a ciência sabe, prova e garante.
O resto, escatologias à parte, é chute de gente que nada sabe e gosta de praticar adivinhações. É conversa-fiada de ignorantes presunçosos, incluídos aí todos os papas, teólogos e profetas bíblicos. Não há a menor possibilidade de essa gente ter qualquer razão em suas previsões místicas. Acho que isso basta para separar os alhos dos bugalhos. A única ferramenta de que dispomos para estudar essa fenomenologia é a ciência.
Mencionei os dogmas de propósito, justamente por tê-los na conta das afirmações mais infundadas e descabidas de que é capaz um papa ou um desses escatólogos atrelados aos ditames da fé organizada. Nada disso tem apoio na razão ou na lógica. Mas apesar dessa carência, há pessoas ingênuas que lhes dão crédito irrestrito. E não exagero nas minhas afirmações, todas admitidas pelos maiores luminares do saber científico. Em contrapartida, o que dizer do dogma da infalibilidade do papa? Isso não é abusar da boa-fé dos crentes? Então, o que é? Como pode um papa afirmar coisas que o bom senso rejeita e, ainda assim, questionar o que afirmam aqueles que têm a razão e a lógica como pilar de sustentação? Qual dos dois merece credibilidade? O profeta, que previu absurdos que jamais se realizaram? O papa, que se diz iluminado pelo espírito santo e, em nome dessa falácia, se autodenomina "infalível‟? Ou o cientista que se utiliza da física, da química ou da matemática para, depois de muito desgaste mental e anos de cálculos e profundos estudos, fazer previsões fundadas em raciocínios e testes confirmados em laboratório?
Como foi que Galileu provou a tese da igualdade da velocidade da queda dos corpos no vácuo? Por inspiração divina? Como foi que Lavoisier chegou à estupenda conclusão que o levou à lei da conservação da matéria em todo o Universo (Natureza)? Terá sido através de revelações místicas, vindas diretamente do além? Isso, sim, essas leis imutáveis mereceriam o rótulo de dogmas. Mas dogmas documentados, límpidos, claros, insofismáveis, indiscutíveis, que se repetem e confirmam a cada teste, dia-após-dia, ano- após-ano.
A diferença entre esses gênios e os papas está na tríade grega dos teoremas: hipótese, tese e demonstração. Peça-se a um papa para demonstrar um único de seus dogmas. Claro que ele nunca será capaz de fazê-lo. Se pedíssemos a Pio XII uma justificativa racional para o dogma da "subida de Maria ao „céu‟ em-carne-e-osso", teríamos uma resposta convincente? Jamais!
No entanto, a maior prerrogativa dada ao cérebro humano foi questionar em busca da compreensão. Foi graças a esse maravilhoso recurso intelectual da dúvida aristotélica e cartesiana que a ciência nos ajudou a compreender o que sabemos e que, por azar, ainda é tão pouco. Mas é o máximo que podemos ostentar, com a imensa vantagem de que iremos compreendendo cada vez mais, desde que não nos deixemos enganar por escatólogos, profetas e teólogos e dediquemos toda a atenção ao que nos dizem os postulados que provêm dos esforços fundados na razão.
Então, fica assim: 2+2=4 e a lei de Lavoisier sempre serão verdades, ao passo que afirmações com base no além sempre serão conceitos sem sustentação. Crer é aceitar passivamente, mas não é compreender. Que cada creia no que quiser, até mesmo no impossível, desde que guarde consigo sua crença e não a imponha a ninguém. Porque se a crença é livre, a descrença também é...
Mario Gentil Costa
Florianópolis.
Contato: magenco@terra.com.br